Por mais que o mês de junho seja sinônimo de festa no coração do Nordeste, urge levantar uma reflexão que incomoda — mas é necessária. A tradição junina, outrora expressão genuína do povo sertanejo, dos sanfoneiros de feira, das quadrilhas improvisadas sob bandeirolas de papel de seda e do culto a Santo Antônio, São João e São Pedro, vem sendo, ano após ano, substituída por um espetáculo caro, pasteurizado e, em muitos casos, desprovido de identidade.
Prefeituras em diversos municípios da Paraíba — e do Nordeste em geral — anunciam com pompa e circunstância cachês milionários para artistas das tendências digitais, cujos estilos musicais, embora legítimos e respeitáveis em seus próprios espaços, não dialogam com o espírito do São João. São palcos dominados por batidões eletrônicos, sertanejo pop e até mesmo funk carioca. Nada contra essas expressões culturais, que também nascem da voz do povo. Mas o problema é outro: trata-se de uma festa temática, que deveria celebrar o forró — em sua forma tradicional, de zabumba, triângulo e sanfona — e os mestres que mantêm essa memória viva, muitos dos quais morrem na invisibilidade, sem recursos, sem reconhecimento.
É claro que o tempo passa e as tradições também precisam dialogar com novas linguagens. Modernizar não significa, necessariamente, quebrar tradições — significa adaptá-las com responsabilidade, para que sobrevivam com sentido no presente. Não se trata aqui de demonizar novas possibilidades, atualizações, ritmos ou formatos. Pelo contrário: que venham, mas que venham com propósito, coerência temática e respeito ao que originou a festa. Tudo pode — e deve — ser pensado da melhor forma, com equilíbrio entre inovação e memória, passado e presente.
Enquanto isso, paradoxalmente, o mesmo Estado que desembolsa cifras astronômicas para pagar apresentações de uma hora — que em nada contribuem para a valorização do que é nosso — alega não ter recursos para reformar escolas, garantir o abastecimento regular de água, construir unidades de saúde ou valorizar professores, que seguem recebendo salários desatualizados e enfrentando péssimas condições de trabalho. É um escárnio quando se considera que mais da metade dos municípios da Paraíba está, neste momento, sob decreto de emergência — seja pela estiagem persistente ou pelos desastres naturais decorrentes das chuvas que castigam regiões inteiras.
Celebrar não é pecado. A festa, quando bem pensada, move a economia, estimula o turismo e enche o povo de alegria. Mas é preciso perguntar: celebrar o quê? E a que custo? Quando a comemoração passa a ser espetáculo, e o espetáculo se converte em cortina de fumaça para as carências estruturais, algo se rompe no pacto ético entre gestor e cidadão.
É tempo de repensar. O São João precisa ser devolvido ao seu povo. Não como mercadoria, mas como expressão cultural. Os recursos públicos, por sua vez, devem ter como destino prioritário a dignidade — e não o aplauso fácil de um palco momentâneo. A tradição, afinal, não é um fardo do passado, mas uma semente de identidade. E identidade, num país em fraturas, vale mais do que qualquer pirotecnia sonora ou digital.
VEJA TAMBÉM
OPINIÃO | A fábrica de urgências: o Brasil refém da distração