Num país em que a televisão ainda dita ao ritmo das conversas diárias, ver o poeta paraibano Augusto dos Anjos ocupar espaço no horário nobre da Rede Globo é mais do que uma homenagem: é um marco simbólico. Na novela Dona de Mim, exibida na última sexta-feira (16), o personagem Abel, vivido por Tony Ramos, declamou com emoção o poema O Morcego diante da família reunida — crianças incluídas. Ao final, com a ênfase de quem sabe o peso das palavras, completou: “Essa é do poeta Augusto dos Anjos, viu!?”.
Em tempos de redes sociais e vídeos curtos, quando tudo parece precisar de uma camada de leveza ou distração pra ganhar à atenção, ver o verso denso e existencial de Augusto dos Anjos surgir em um ambiente familiar, com crianças ouvindo atentas, é um belo e necessário contraponto.
Diz-se que Augusto é “difícil”, “sombrio”, “fúnebre”. E ele o é — mas não só. É também profundo, humano, espiritual, amoroso e atual. Seus versos, escritos no começo do século XX, atravessam ao tempo com uma força que poucos poetas conseguiram manter. E talvez seja exatamente essa densidade que o torna cada vez mais contemporâneo, numa era de vazios disfarçados de ruído.
A Globo, enquanto maior vitrine cultural do país, ao abrir espaço a um poema como O Morcego — e, mais ainda, ao colocá-lo num contexto de afeto, de família, de celebração — ajuda a reposicionar Augusto dos Anjos não como o poeta dos cemitérios e da decomposição, mas como o autor que fala sobre a alma humana em suas camadas mais sinceras. Um poeta que não nega à dor, mas a encara de frente!
A cena também nos obriga a repensar o lugar da poesia na vida cotidiana. Por que não oferecer Augusto dos Anjos às crianças? Por que não ensinar que, sim, o mundo tem sombras — e que nomeá-las é um ato de coragem? Enquanto muitos tentam proteger à infância apenas com cores vibrantes e promessas de finais felizes, o poema na novela mostra que a literatura, mesmo a mais densa, também pode ser forma de afeto e aprendizado.
Na simplicidade do gesto — um personagem subindo ao palco pra declamar um poema em voz alta — a novela Dona de Mim fez um serviço raro: trouxe um poeta centenário para o presente, mostrou que ele ainda pulsa, ainda é ouvido. E nos lembrou que a televisão, quando quer, pode ser também janela para o essencial.
Mas se a maior emissora do país ainda se dispõe a abrir espaço ao Augusto dos Anjos, o mesmo não se pode dizer da terra onde ele nasceu. As programações das TVs locais, sobretudo na Paraíba, parecem ter esquecido que dali veio um dos maiores poetas da língua portuguesa. Não há declamações, não há especiais, não há esforços pra tornar seus versos acessíveis às novas gerações. Reforça-se ao velho ditado: santo de casa não faz milagre!
Pior ainda é o silêncio da Academia Brasileira de Letras — que permanece trancada em sua torre de marfim, mais preocupada em manter rituais do que em dialogar com o Brasil real, o Brasil conectado, o Brasil digital. Enquanto influenciadores declamam Augusto em vídeos virais e novelas populares o colocam na sala de estar do povo, a ABL ainda não entendeu que o século XXI exige mais do que cadeira cativa: exige presença, reinvenção e coragem cativa!
A lição é clara: a cultura não precisa ser engessada pra ser respeitada. Quando a poesia encontra novas formas de circular, ela não se dilui — ela se espalha. E talvez o maior gesto de respeito a Augusto dos Anjos, hoje, seja tirá-lo do pedestal da solenidade e deixá-lo fazer o que sempre fez de melhor: falar direto à alma, sem medo da sombra.
Mais de um século depois, o paraibano continua sendo lido e declamado no Brasil real, mas ignorado no Brasil oficial. Augusto segue como anjo da literatura brasileira, alçando voo sobre o tempo, enquanto muitos morcegos seguem promovendo à indiferença cultural, nas sombras.
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VÍDEO | Tony Ramos declama poema do paraibano Augusto do Anjos em ‘Dona de Mim’
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O MORCEGO
Meia-noite. Ao meu quarto me recolho.
Meu Deus! E este morcego! E, agora, vede:
Na bruta ardência orgânica da sede,
Morde-me a goela igneo e escaldante molho.
"Vou mandar levantar outra parede..."
— Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho
E olho o teto. E vejo-o ainda, igual a um olho,
Circularmente sobre a minha rede!
Pego de um pau. Esforços faço. Chego
A tocá-lo. Minh'alma se concentra.
Que ventre produziu tão feio parto?!
A Consciência Humana é este morcego!
Por mais que a gente faça, à noite, ele entra
Imperceptivelmente em nosso quarto!