Eu me lembro do ano 2000 como se fosse ontem, embora o tempo tenha escorregado pelas minhas mãos, como se os ponteiros do relógio quisessem esconder o quanto realmente se passou. Aquela virada que todos esperavam como o começo de um novo milênio, mesmo que, tecnicamente, o novo milênio só tenha se iniciado em 2001, foi um evento tão grandioso quanto um eclipse solar: raro, poderoso e, de alguma forma, assustador. Para o mundo, 2000 representava mais do que apenas o "final de um século" — era um marco cultural, uma virada emocional, o fim de um ciclo e o início de algo desconhecido. O mundo inteiro parecia se preparar para o fim — e o que é mais irônico do que o fato de que, no fim, foi justamente essa expectativa apocalíptica que, de certa forma, moldou o início do novo milênio?
Falava-se de um apocalipse iminente, de uma catástrofe em que a civilização entraria em colapso. As pessoas estavam presas ao medo do Bug do Milênio — um erro nos sistemas de computação que poderia, teoricamente, fazer com que todo o nosso mundo tecnológico desmoronasse. Bancos faliriam, aviões cairiam do céu, os serviços básicos de saúde seriam interrompidos. O medo de uma falha global dominava as conversas. Mas o que ninguém sabia — ou talvez o que poucos queriam admitir — é que, ao invés do fim, aquele era o início de algo novo. Algo tão grandioso quanto o próprio medo do desconhecido.
Naqueles meses que antecederam a virada de milênio, parecia que o mundo se aproximava. As pessoas olhavam umas para as outras, não com desconfiança, mas com uma estranha solidariedade. Como se, em meio ao caos iminente, uma conexão mais profunda fosse o último refúgio. As conversas nas ruas, nos cafés, nas lojas, estavam todas voltadas para o mesmo ponto: o desconhecido que nos aguardava à meia-noite de 31 de dezembro de 1999. Estávamos todos no mesmo barco, num cenário global de incertezas.
Lembro das longas conversas que tive com amigos, parentes, até com desconhecidos — todos tentando entender, de alguma forma, o que viria. O Bug do Milênio se tornou, para muitos, o sinal de que algo terrível estava prestes a acontecer. E como toda grande expectativa, o boato foi alimentado, esticado, como uma bola de neve. As conversas mais rasas deram lugar às mais profundas, como se, em algum nível, todos procurassem sentido em algo que parecia não ter explicação. Aprofundamo-nos nas nossas crenças, seja no cristianismo, seja nas interpretações místicas do calendário Maia. Era como se a virada de 1999 para 2000 fosse o último suspiro da humanidade antes de sucumbirmos a algum destino trágico e inevitável.
Mas o que foi ainda mais fascinante foi o quanto o medo coletivo uniu as pessoas. Não me recordo de nenhum outro momento — na história recente — em que a humanidade tenha se aproximado tanto. Amigos, famílias, até estranhos, pareciam ter uma necessidade urgente de estar juntos, de compartilhar os últimos momentos, caso o mundo realmente acabasse. Com os olhos fixos no relógio, em busca de uma explicação para o desconhecido, formamos uma comunidade global sem querer, amparados pelo medo — o medo de que a noite de 31 de dezembro de 1999 fosse o fim de tudo.
Em retrospectiva, foi, sem dúvida, a primeira grande fake news do século XXI. Não no sentido tradicional que conhecemos hoje, com notícias falsas espalhadas via redes sociais, mas na forma de um medo coletivo baseado em uma teoria que, embora plausível em seu contexto tecnológico, era, no fundo, uma grande falácia. Uma mentira que nos pegou de surpresa e nos uniu em nossa vulnerabilidade. O Y2K, o Bug do Milênio, não destruiu o mundo, mas nos forçou a enfrentar o que mais temíamos: a incerteza do futuro. A falsa ameaça nos trouxe, paradoxalmente, mais perto uns dos outros.
À meia-noite, quando o relógio finalmente bateu o tão aguardado “zero” e o mundo não explodiu, não houve nenhum grande evento cataclísmico. Mas houve algo mais importante: uma compreensão de que o medo tinha sido mais forte que qualquer falha tecnológica. Foi como se a humanidade, por um momento, tivesse se unido para acreditar em algo muito maior do que simplesmente passar de um ano para outro. E, ao contrário do que pensávamos, o mundo não acabou. Mas, sim, nós começamos de novo, juntos.
E assim, o "século e o milênio começaram". Não com o fim, mas com a conscientização de que o maior desafio sempre será o que não sabemos. O verdadeiro apocalipse, talvez, seja o que criamos com nossas próprias expectativas, e a grande verdade do ano 2000 foi que, no final, tudo o que o mundo precisou foi de um pouco mais de esperança e união para seguir em frente.
Quem diria que aquela fake news sobre o fim do mundo seria, na verdade, a primeira grande mentira a nos ensinar a verdade: que, no fim, são os laços que nos unem que nos salvam de qualquer catástrofe.
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